quinta-feira, 30 de junho de 2011

Outono de Amor Perdido

Era Outono. As folhas estalavam por baixo dos seus pés e Gwendolen corria sem parar, esmagada pelo peso da perda, da solidão e da ausência. A floresta sussurrava em seu redor, chamando-a, tentando abraçá-la enquanto esta se esquivava a qualquer tentativa de reconforto, percorrendo o trilho que a levava ao fim da ilha, ao mar, o trilho interminável que a separava de Tristian. Para trás deixava a sua casa, os seus irmãos e todas as recordações de amor que a vida lhe oferecera. Compreenderiam eles a sua partida, a necessidade sufocante de perseguir o seu sonho mesmo que isso implicasse fugir de todos os que lhe eram queridos e abdicar de uma vida a que sempre acreditara estar destinada?

Porém, Gwendolen não pensava nisto. Não pensava no desgosto de seus irmãos quando percebessem que a sua partida era definitiva, não pensava nas saudades da floresta, nos pares de olhos invisíveis que sempre a acompanhavam, no canto das ondas que foram palco de tantas brincadeiras da sua infância. Gwendolen pensava em Tristian e na urgência de chegar antes de o seu barco partir, queria ter asas e poder percorrer toda a distância que a separava do mar num breve instante, abraçar Tristian e dizer-lhe o quanto o amava, quão impossível era para si viver sem ele, respirar sem ele, quão injustos tinham sido os seres do Outro Mundo ao tentar separá-los, ao criar-lhes obstáculos e conflitos que não poderiam ter ultrapassado.

A culpa era sua. Gwendolen rejeitara-o há três noites atrás, ao vê-lo abraçado a uma jovem de cabelos castanhos flutuantes e olhos doces, acreditara na traição que os seus olhos lhe mostravam e recusara a possibilidade de tudo ser uma mentira planeada. Tristian procurara-a e ela mandara-o embora, condenando-os a ambos a um destino de solidão que apenas dela dependia. Passaram-se três dias desde que Gwendolen se fechara no quarto e chorara todo o dia e toda a noite num desgosto enraivecido. Ao quarto dia, Gwendolen saiu e procurou o espelho de água, uma gruta subterrânea nas profundezas da floresta. Sentada no silêncio, ela apareceu – Litavie, com o seu vestido de água e cabelos belos, leve como apenas uma figura do Outro Mundo poderia ser. Gwendolen permanecera silenciosa e de olhos fechados quando a verdade lhe bateu com um baque seco – Litavie mostrou a Gwendolen a teia de mentiras em que a tinham enrolado – Tristian num abraço solitário, a jovem de cabelos castanhos e olhos doces a desvanecer-se no ar, criada apenas para que Gwendolen acreditasse no que os seus olhos viam e o seu coração não sentia. Subitamente, Gwendolen compreendeu que a ilha não a queria deixar partir – a floresta que a acolhera desde pequena, os seus companheiros invisíveis e a sua família não poderiam abdicar da sua alma, do bater do seu coração. Invadidos pelo terror de a perderem para Tristian, que partiria para a Ilha do Sol levando Gwendolen consigo, encontraram a única forma de a prender àquela terra – destruir o seu amor por Tristian, povoá-lo de dúvidas e incertezas e condená-lo com a traição. Litavie desapareceu tão suavemente como aparecera, sem que Gwendolen pudesse pronunciar um som. Mas Gwendolen não tinha necessidade de falar. Gwendolen tinha apenas necessidade de correr, correr o mais rápido que as suas pequenas pernas lhe permitiam, correr mais rápido do que o vento para desfazer todos os enganos, pois tudo o que importava era chegar antes que o barco partisse e Tristian se perdesse para sempre no horizonte.

Instantes depois, o mar surgiu ao longe, e foi passando de um pequeno ponto azul para um vasto lençol à medida que Gwendolen caminhava esgotada. E ali estava ele – um barco forte e robusto, tocado pelas cores quentes do fim da tarde.
Tristian amarrava umas cordas na areia quando Gwendolen surgiu na sua frente, o seu rosto corado, os seus cabelos ruivos desgrenhados e uma expressão de dor. Tristian compreendera desde o primeiro momento o enredo onde o tinham capturado e, olhando Gwendolen nos olhos, por um instante, a praia desapareceu e apenas existiam os dois com o seu amor transbordante. Então, Tristian compreendeu. Apesar de todo o seu desejo, percebeu que não poderia nunca retirar àquela ilha perdida no meio do mar o coração que lhe dava a vida. Gwendolen não lhe estava destinada. Tristian teria que partir para a Ilha do Sol, teria que regressar para junto da sua família, para um lugar onde a força e alegria de Gwendolen não tinham lugar. Num gesto de amor cruel, virou-lhe as costas, pronunciou um adeus derradeiro e, num gesto frio, subiu para o barco.

Gwendolen não suportou a dor da rejeição. Deixando-se cair na areia, aí permaneceu enquanto o barco se afastou, enquanto o frio a envolvia em garras gélidas apesar do calor daquela tarde, perdida numa dor que nunca a abandonaria. Enlouquecida pelo abandono, foi-lhe indiferente o momento em que os irmãos a foram buscar e a tentaram trazer de novo à vida. Foram-lhe indiferentes as poções que lhe deram para a tentar curar. Ninguém sobrevive a uma perda assim. A ilha perdera a sua alma.

Passados uns anos, fechada no seu quarto e perdida na sua loucura, observou, alheia, da janela, um dia ameno de Outono em que a povoação entrou numa azáfama desenfreada. Então, alguém entrou no quarto e lhe disse: “Gwendolen, tens que vir! Um barco naufragou ontem à noite nas rochas da Falésia da Lua, tens que vir…”. E arrastada pela mão dessa pessoa, foi levada até uma cabana onde jazia o corpo de Tristian, quase sem vida. Tristian olhou-a nos olhos e apenas conseguiu sussurrar: “Desculpa.” E não foi preciso que ele lhe dissesse que regressara por ela, por não saber viver sem ela e por sempre a ter amado. Gwendolen soube simplesmente, ajoelhou-se ao seu lado, agarrou a sua mão e num último beijo que preencheu todos os anos que haviam passado desde a sua partida, Tristian abandonou a vida junto da sua paixão, abraçado para sempre a um amor intemporal.




Conto escrito para participação no concurso "A Vidente de Sevenwaters" do fórum Mundo Marillier.

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