domingo, 24 de abril de 2011

Ofício de Viver




"É preciso ter sentido a obsessão da autodestruição. Não falo do suicídio: gente como nós, apaixonada pela vida, pelo imprevisto, pelo prazer de a "narrar", não pode chegar ao suicídio, a nao ser por imprudência. Além disso, o suicídio aparece actualmente como um daqueles heroísmos míticos, uma daquelas fabulosas afirmações de uma dignidade do homem diante do destino, que têm interesse estaturiamente, mas que nos deixam entregues a nós próprios.



O autodestruidor é um tipo ao mesmo tempo desesperado e utilitário: esforça-se por descobrir em si todos os defeitos, todas as cobardias, e de favorecer estas disposições para aniquilamento, procurando-se, inebriando-se, extraindo delas prazer. O autodestruidor é, afinal de contas, mais seguro de si do que qualquer vencedor do passado; sabe o fio que nos liga ao amanhã, ao possível, ao prodigioso futuro é um cabo mais robusto - tratando-se da última sacudidela - do que não sei que fé ou integridade.



O autodestruidor é, acima de tudo, um comediante e um homem que se domina. Não deixa escapar nenhuma ocasião de se pôr à prova. É um optimista. Espera tudo da vida e vai-se preparando para soltar, sob o fardo do acontecimento futuro, os sons mais agudos ou significativos.



O autodestruidor não pode suportar a solidão.



Mas vive num perigo contínuo; o de ser invadido pela mania da construção, da sistematização, ou por um imperativo moral. Então, sofre sem remissão e poderia, até, suicidar-se.



Notar bem o seguinte: no nosso tempo, o suicídio é um modo de desaparecer, praticado tímida e silenciosaento, sem dar nas vistas. Não é mais um agir, mas um sofrer.



Quem sabe se o suicídio optimista regressará ainda a este mundo?



Exprimir sob a forma de arte, com finalidade de catarse, uma tragédia interior, apenas o pode fazer o artista que, no momento em que vivia a tragédia, ia já tecendo os fios construtivos, ia já realizando a incubação criadora. Não existe a tempestade sofrida loucaente e, depois, a libertação através da obra, arriscando até o suicídio. É tão verdade que os artistas que realmente se mataram por causa dos seus casos trágicos são habitualmente cantores ligeiros, diletantes de sensações, que nunca nas suas obras deixaram transparecer nada do profundo cancro que os roía. Donde se conclui que o único modo de fugir ao abismo é encará-lo, medi-lo, sondá-lo e mergulhar nele.



É desoladoramente tonificante - como uma manhã de Inverno - sofrer uma injustiça. Dá novo vigor, segundo os nossos mais ciumentos desejos, ao fascínio da vida; devolve-nos a noção do nosso valor perante as coisas; lisonjeia. Ao passo que sofrer uma desgraça por puro acaso é aviltante. Já o experimentei, e quereria que a injustiça e a ingratidão tivessem sido ainda maiores. A isto chama-se viver e, aos vindo e oito anos, não ser precoce.



Quando à humildade, é muito raro, no entanto, sofrer uma bela e totalitária injustiça. São tão tortuosos os nossos actos. Em geral, acontece sempre que também temos um pouco de culpa e, então, adeus manhã de Inverno.



Não só um pouco de culpa, mas toda a culpa. Não há escapatória. Sempre.



Que a cutilada seja infligida por jogo, por ócio, por uma pessoa fátua, não alivia as dores, torna-as mais atrozes, dispondo a meditar sobre a causalidade da coisa e sobre a nossa responsabilidade em não termos previsto a queda.



Imagino que seria um conforto saber que a pessoa que nos feriu se macera com remorsos, dá importância à coisa? Este conforto só pode nascer da necessidade de não estar só, de quebrar os laços entre o nosso eu e os outros. Por outro lado, se essa pessoa sentisse remorsos por ter ferido, não a mim em particular, mas apenas um homem enquanto criatura, desejaria eu que ela tivesse remorsos? É preciso, portanto, que seja eu próprio, e não o homem que existe em mim, que seja reconhecido, chorado e amado.



E não se abre o campo a uma outra e duradoura tortura ao recordar que a pessoa que nos feriu não é fátua, nem ociosa, nem leviana? Ao recordar que essa pessoa é habitualmente séria, compreensiva, firme, e que só no meu caso é que brincou?



Não só essa pessoa sofre remorsos por me ter ferido, a mim, em particular, mas sente-se divertida, precisamente, no meu caso em particular. Apenas haveria um modo de considerar humana tal situação, e sinto-me precisamente na situação oposta. Cada vez melhor. "



Cesare Pavese (Ofício de Viver)







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